domingo, 20 de dezembro de 2009

LENDO ROMANCES


DOIS ROMANCES INFERNAIS


José Neres


O inferno, ou seus hipotéticos habitantes, é um dos temas recorrentes na literatura desde seus primórdios. Alguns escritores de excelente estirpe já se utilizaram passagens ambientadas no reino das trevas para a composição de suas obras. Nomes como Virgílio, Dante Alighieri, Gil Vicente, Guimarães Rosa e Jean Paul Sartre cravaram nas letras diversas concepções de como seria esse mundo desconhecido. Porém, mesmo sendo algo que povoa o inconsciente coletivo de povos das mais diversas origens, a temática do inferno ainda pode ser considerada um tabu, principalmente para quem põe os dogmas religiosos acima da tessitura literária.

Por se tratar de um assunto e de uma ambientação tão melindrosos, pode causar certa estranheza o fato de que dois romancistas maranhenses contemporâneo tenham, quase ao mesmo tempo, escolhido o inferno como espaço literário de suas narrativas que, ao mesmo tempo, trabalham uma refinada e sutil ironia, com boas doses de bom humor e com cenas que demonstram o domínio dos dois escritores com relação à técnica narrativa.

Quem se interessar pela temática tem à disposição duas obras bastante interessantes: “O Arquivista Acidental”, de Antônio Guimarães de Oliveira, e “O Infinito em Minhas Mãos”, de José Ewerton Neto. São dois romances que enveredam pelos campos do desconhecido, tendo como base os problemas e as dificuldades comuns a todos os habitantes da terra. Em ambas as obras, o leitor facilmente percebe que o interesse maior dos escritores não está em descrever o inferno, mas sim em mostrar que estar vivo pode não ser um privilégio tão grande assim.

Em “O Arquivista Acidental”, Antônio Guimarães traz a história de Arquimedes do Espírito Santo, um funcionário público que, habituado às lides burocráticas, requere a aposentadoria, mas morre na fila, antes de receber o benefício. Ao ser levado para o paraíso, ele dispensa a paz celestial e pede abrigo no inferno. A partir daí as peripécias se multiplicam e, rapidamente, o burocrata pacato, porém revoltado, vai se transformando em um temido, porém desastrado demônio.

Seguindo por um caminho paralelo, José Ewerton Neto cria Eunápio, um homem que mesmo sem grandes pecados, tem sua alma levada para o inferno. Contando com a sorte e com o péssimo caráter de pessoas tidas como idôneas, mas que só pensam no próprio bem, o novo demônio, agora com o nome de Vacele, envolve-se em um turbilhão de acontecimentos que o levarão a questionar as razões da própria existência.

Os dois escritores, cada um com seu estilo característico, acabam revivendo a velha máxima latina do “Ridendo castigat mores” (Rindo, castigam-se os costumes). Eles manejam com maestria a difícil arte de ironizar e de construir sutis alegorias a partir de situações cotidianas que passam despercebidas pela maioria das pessoas. Em verdade, nos dois trabalhos, a imagem do inferno nada mais é do que um pano de fundo para ilustrar os mandos e desmandos que ocorrem cotidianamente em todas as esferas do poder.

Antônio Guimarães utiliza-se da astúcia de transformar um funcionário publico em diabo, com isso, deslinda todos os entraves burocráticos encontrados em uma repartição pública, seja ela no inferno, no céu ou na terra. Por sua vez, Ewerton Neto desnuda a trajetória que leva uma pessoa comum a ser tratada como ídolo, mesmo que sua alma esteja eivada de valores negativos, para isso ele, estrategicamente, centra as missões de seu demônio literário em três figuras tipificadas que transpiram falsidade e malícia: um político, um líder religioso e um autor de auto-ajuda.

No final da leitura dos dois romances, fica uma certeza: apesar das forças demoníacas que entravam as letras, nossos escritores ainda são capazes de transformar o enxofre infernal em prosa com divino sabor literário.





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