sexta-feira, 30 de julho de 2010

AUTORES CONTEMPORÂNEOS


TRÊS VEZES OITENTA
José Neres


            Em 1930, o mundo vivia a emoção da primeira Copa do Mundo, no Uruguai, mas também  se despedia de algumas pessoas que muito contribuíram para a cultura, como é o caso de Arthur Conan Doyle, o criador do detetive Sherlock Holmes; da poetisa Portuguesa Florbela Espanca e do grande escritor inglês D. H. Lawrence.  No meio de uma grande crise política,  Getúlio Vargas, após um golpe de estado, assumia o poder, e, no mesmo ano, o mundo das artes recebia de presente a chegada de alguns nomes que iriam deixar suas marcas pelas décadas seguintes, como é o caso dos atores Sean Connery, Clint Eastwood e Jece Valadão, Lima Duarte e Carlos Zara, do cantor e compositor Ray Charles, do apresentador Silvio Santos, do jornalista Paulo Francis e da escritora Hilda Hilst.
            No Maranhão, governadores entravam e saíam do poder de maneira vertiginosa. No mesmo ano, o Estado foi governado por Magalhães de Almeida, que chegava ao fim de seu mandato, José Pires Sexto, José Luso Torres e José Maria dos Reis Perdigão, além de uma Junta Governativa que tomou as decisões administrativas por aproximadamente cinco semanas. É nesse tumultuado contexto histórico e político que nascem três dos principais intelectuais maranhenses, que, neste ano de 2010, comemoram, de forma totalmente lúcida, a oitava década de vida: José Sarney, Ferreira Gullar e Ubiratan Teixeira.
            Veremos a seguir, por ordem de nascimento,  um pouco da produção intelectual desses três senhores que sempre ilustraram nossas letras com a vivacidade de seus traços e com a força de suas palavras.
           
SARNEY EM PROSA E VERSO
           
            Quem não está acostumado com o estudo da história literária, pode imaginar que José Sarney seja um político que se fez escritor, mas um olhar um pouco mais atento mostra claramente que, na vida de Sarney, a literatura chegou primeiro e somente anos depois teve suas atenções divididas com a arte da política.
            Em 1954, com apenas 24 anos, José Sarney fez sua estreia literária, com o lançamento de A Canção Inicial, um livro dividido em três partes: canções, baladas e outros poemas. Nas três partes do livro há o marcador temporal de 1948, quando o escritor contava, portanto, com somente 18 anos de vida. Ainda fortemente influenciado pela linguagem parnasiana, mas tentando alçar voos mais amplos, o livro traz uma mescla de lirismo e telurismo, com incursões pela abordagem social, como é o caso do belo poema Menina Morta, de grande profundidade imagética, praticamente uma tela impressionista pintada com palavras.

A pura carícia de olhos virgens
para o sol, árvores cantando, a ternura
está ausente
no frio corpo da morte
levada pela vida
que levaram.

Espantem os carcarás
seus bicos não biquem
os olhos da menina.

A paisagem ardente de sol e fome.
Há nas sombras que caminham
pesadas luas de suor e sede.

            Mas o reconhecimento nacional de José Sarney como escritor só apareceu quando ele já era apontado por todos como um dos grandes políticos brasileiros, daí o equívoco de pensar que o escritor veio na carona do homem público. O reconhecimento veio com a publicação de Maribondos de Fogo, no final da década de 70, um livro mais maduro que tentava enlaçar temas regionais com um sopro de universalismo e que já trazia em seus versos um projeto de transformar as experiências de vida em versos, imagens guardadas na memória em estrofes e o insondável desvão da memória em poesia.
            Paralelamente às atividades políticas e poéticas, Sarney também cultivou o hábito de escrever em prosa. Primeiro vieram os contos que deram origem aos livros Norte das Águas, Brejal dos Guajas e 10 Contos Escolhidos. No começo da década de 90, os leitores tiveram outra surpresa: o lançamento de O Dono do Mar, o primeiro romance de autoria de José Sarney. As aventuras de Mestre Antão Cristório mostraram que Sarney tinha fôlego para engendrar uma narrativa que fosse além das breves páginas de um conto. A seguir veio outro sucesso: Saraminda, a bela prostituta que, além de ter os bicos dos seios revestidos a ouro, também tinha o poder de voltar a ser virgem cada vez que se apaixonasse. Mais recentemente, veio à luz também A Duquesa Vale um Missa, romance no qual um rapaz se apaixona pela imagem de uma bela mulher que está pintada em um quadro.
            Além da poesia e da prosa, Sarney também investe nas pesquisas e em produção de artigos que são reproduzidos semanalmente em diversos jornais e que posteriormente são enfeixados em livros com temáticas voltadas para uma visão global do momento histórico e político em que foram escritos os artigos.
            José Sarney chega a seu 80º ano de vida (completado em 24 de abril de 2010) com a carreira política reconhecida e solidificada, mas sendo também visto como homem ligado às letras, sejam elas em prosa ou em verso.


GULLAR: O SELF MADE POÉTICO

            Ferreira Gullar é um poeta que parece ter levado a sério uma das estrofes de seu livro A Luta Corporal, quando ele diz que:

Caminhos não há
Mas os pés na grama
Os inventarão

            Realmente, quando ele saiu de sua terra natal, antes de completar vinte anos, parecia que não haveria caminhos a escolher, nem mesmo uma vereda por onde seguir. Mas com os pés, com as mãos, com as palavras e, principalmente, como sua inteligência aguda, conseguiu abrir os caminhos por onde faz desfilar diante dos olhos de seus admiradores sua trajetória de sucesso.
            Às vésperas de completar oitenta anos, o poeta é agraciado com o Prêmio Camões, que vai se somar às dezenas de outras conquista do escritor maranhense que enfrentou dezenas de obstáculos e perseguições de caráter político-ideológico até se tornar um dos mais reconhecidos intelectuais do final do século XX e início do Século XXI, como pode ser visto em sua autobiografia intitulada Rabo de Foguete – os anos do exílio.
            Compositor, crítico de arte, poeta, tradutor, ensaísta, jornalista, cronista e teatrólogo, Gullar começou sua carreira com um livro que ele mesmo renegou – Um Pouco Acima do Chão – publicado em São Luís do Maranhão, em 1949, ainda na juventude do poeta, e alcançou a notoriedade com Poema Sujo, um a obra única das letras brasileiras, na qual o grito de um exilado se faz ecoar pelas páginas de um desespero de um homem que encontra na poesia o elo entre a realidade do exílio e o desejo de voltar a sua pátria, nem que seja por meio de lembranças que se tornam mais vivas a cada verso construído. Há houve inclusive quem dissesse que Poema Sujo é a Canção do Exílio dos tempos da ditadura, tal sua profundidade conteudística e sua força imagética entremeada de uma excelente urdidura poética.
            Nos longos cabelos prateados, nos versos e na produção intelectual de Gullar pode ser encontrada grande parte da recente história literária do Brasil, desde as experiências com as vanguardas até incursão pelo campo da literatura de cordel. Poeta combativo e engajado com as causas sociais, ele consegue retirar do cotidiano a seiva com a qual dará vida a sua produção poética. E é capaz de ser extremamente lírico, como ocorre na conhecidíssima Cantiga Para Não Morrer, que foi recentemente musicada e gravada pelo cantor Raimundo Fagner:

Quando você for se embora
moça branca como a neve,
me leve

Se acaso você  não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

            Mas também é capaz de ter a contundência verbal do início do poema Bomba Suja, no qual denuncia os mandos e desmandos que fazem com que o trabalhador passe fome no Brasil e que não possa usufruir do fruto do próprio trabalho:

Introduzo na poesia
a palavra diarréia,
não pela palavra fria
mas pelo que ela semeia.

Quem fala em flor não diz tudo
quem fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.

No dicionário a palavra
é mera idéia abstrata.
Mais que palavra, diarreia
é arma que fere e mata.

            Aos oitenta anos a serem completados em setembro de 2010, a força poética de Gullar parece se multiplicar a cada página e ganhar outras dimensões que vão além das palavras no papel. Sua poesia é a essência da vida transformada em palavras.


UBIRATAN TEIXEIRA NO PALCO DA VIDA

            Outro escritor maranhense que está prestes a chegar à casa dos oitenta anos é o contista, teatrólogo, cronista e prosador Ubiratan Teixeira. Algumas fontes o colocam como nascido em 1930, outras em 1931, mas qualquer que seja a data exata, ele é merecedor das homenagens que receber.
            Neste ano de 2010, o escritor foi homenageado com uma nova edição de um de seus pais expressivos contos: Velas ao Crucificado, que também já foi adaptado para o teatro pelo engenhoso intelecto de Wilson Martins e em curta metragem pelo talento incontestável de Frederico Machado.
            No conto, uma família pobre se vê às voltas com um problema extremamente sério: a morte de um dos filhos e a dificuldade em fazer um enterro digno para a criança. Os pais lamentam o ocorrido e convivem com a falta de solidariedade e com as cobranças das pessoas que exigem ações que vão além das forças pecuniárias da família. O tom da narrativa escapa à pieguice e mostra de forma fria a essência humana.
            Dono de um estilo vigoroso e ágil, Ubiratan Teixeira percorre com desenvoltura as trilhas de diversos gêneros literários, do conto à novela, passando pela arte dramática e pelos textos voltados para o público infanto-juvenil. Sobrando tempo e disposição ainda para disponibilizar aos estudiosos do teatro parte de seu vasto conhecimento sobre o assunto, como acontece com seu Dicionário de Teatro, um livro essencial para quem deseja imiscuir-se pela prática e pela teoria do fazer teatral.
            Como cronista, Ubiratan Teixeira vem há décadas oferecendo a seus leitores lições de como deve ser escrita uma crônica a partir de acontecimentos aparentemente fortuitos para a maioria das pessoas, mas que não passam de forma despercebida pelo olhar treinado e pela sensibilidade aguçada de quem tem de tirar, quase que diariamente, dos fatos banais a matéria para seus textos. Revoltado com os descasos por que passa a cidade, o escritor se torna o porta-voz de grande parte da população que não tem como expor para o grande público seus desejos e anseios. Então ao ler a mescla de ironia, acidez e indignação que Ubiratan destila em seus textos semanais, o leitor, sente que há alguém que o defende e que fala por ele. O próprio autor, na orelha de seu livro Pessoas explica seu estilo quando diz que:

Das reportagens, das crônicas peraltas e das refregas com a capangada vitorinista foi nascendo o ficcionista. (...) Pobre de bens materiais que sempre fui, que venho de uma tribo sem posses e não poderia jamais, de repente,  aparecer proprietário e dono de tesouros. E essa pobreza evangélica é responsável por essa forma rude  do meu viver sombrio, essa maneira bisonha de encarar o mundo e ser solitário, o humor corrosivo, que me deixa à margem de todos e confere essa forma amarga de reproduzir a humanidade.

            E é para dar voz e vez para esse povo sofrido que sofre calado que Ubiratan Teixeira faz seus textos literários centrados em pessoas comuns, em personagens que sofrem e que têm consciência do próprio sofrer, consciência da angústia que engloba a todos em um mesmo lodaçal de miséria.
            Ao longo de sua trajetória de várias décadas de contato com as palavras escritas, o autor da instigante novela O Banquete, não cruzou os braços para apenas ver os acontecimentos passarem a sua frente. Ele preferiu arregaçar as mangas da camisa e pôr seu talento em prol do que ele considera correto e justo. Em suma, ele não lavou as mãos diante das injustiças que presenciou ou das quais teve provas. No lugar do silêncio conivente, UT soltou a voz da revolta em forma de peças, contos, novelas ou artigos. E, em breve chegará aos oitenta anos, olhará para trás e terá a certeza de que não viveu oito décadas em vão.

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