quarta-feira, 26 de maio de 2010


TRAGÉDIA NOSSA DE CADA DIA


José Neres



Eu não queria matar aquele homem. Juro que não queria! Tudo aconteceu de maneira tão rápida que só depois de um tempo foi que percebi o que havia acontecido. Mas uma coisa é certa: eu não queria matar ninguém. Sou uma vítima também.
Era um feriado. Desses que todo mundo aproveita para enforcar mais um dia de serviço, anulando os dias úteis para aproveitar e descansar ou cair na bebedeira. E foi essa tal de bebedeira que me levou a cometer um crime que jamais aconteceria, se o maldito álcool não tivesse sido consumido de maneira tão irresponsável.
Meu companheiro jamais saía sem mim. Silenciosa e discreta, eu sempre o acompanhava em todos os eventos. Desde uma simples festinha até um jogo de futebol, lá estava eu fielmente a seu lado, grudada em seu corpo a protegê-los dos muitos inimigos que ele acumulava com seu jeito truculento de ser. Comigo, ele sempre se sentia protegido, mais forte, mas homem. Invulnerável.
Eram raras as vezes em que ele me deixava no carro, descansando, sem ter nada o que fazer. Mas ele bebia muito e arrumava  muita confusão. Chegava mesmo a ser violento, super violento. Lembro-me de que por diversas vezes o tirei de brigas, servindo de escudo para que ele saísse ileso. Era até engraçado o medo que nós impúnhamos nas pessoas. Voltávamos para o carro e eu ficava a seu lado, quietinha, só ouvindo suas gargalhadas. Em casa, ele me levava para a cama, beijava-me várias vezes e dormia a meu lado, roncando alto, bem alto.
Dizem que antes de me conhecer ele era tranqüilo, incapaz mesmo de levantar a voz para alguém. Um verdadeiro lerdo. Muitas vezes era humilhado pelos valentões da rua ou da escola. Seus poucos amigos me culpavam pela brusca transformação. A família dele me detestava e fazia de tudo para nos separar. Mas não tinha jeito. Ele não sabia mais viver sem mim. Virei uma espécie de anjo da guarda para ele. Não nos separávamos nunca. Comigo por perto, ele deixava de ser um fracote e virava um homem respeitado, temido.
Naquele feriado fomos a uma festa. Como sempre eu estava ao lado dele. Dançamos bastante. Algumas vezes quase caí. Mas ele era cuidadoso comigo e me deixava sempre próxima a seu corpo. Se alguém tocava inadvertidamente em mim, ele me protegia, assim como eu o protegia na hora das confusões. Pequena e discreta, não incomodo ninguém, não sou de barulho e quase sempre passo despercebida nos lugares que frequentamos. Nasci para servir.
Pois bem, depois de beber e de dançar muito, ele foi aconselhado por conhecidos a voltar para casa e dormir. No começo, protestou, mas estava um tanto quanto cansado e decidiu seguir os conselhos. Morto de bêbado, pegou o carro e saiu cantando os pneus. O som alto e os constantes ziguezagues chamavam a atenção dos transeuntes. Eu estava quietinha ao lado dele. De repente, um forte barulho inundou a noite. Ele bateu na traseira de um carro. Depois de um palavrão, ele abriu a porta e foi tomar satisfação com o outro motorista. Um bate-boca terminou em agressão. Embora menor, o outro condutor estava sóbrio e era mais forte. Com o rosto sangrando e os lábios trêmulos, ele voltou para o carro e me puxou de modo agressivo.
Foi tudo muito rápido. Eu não queria fazer aquilo. Foi horrível. Disparei três vezes. O rapaz, a quem nunca havia visto antes, soltou um grito e caiu morto. Uma multidão furiosa se aproximava. Não entendi nada. Fui jogada no chão e só ouvi o barulho do motor que arrancava. Meu amigo parece ter esquecido a bebedeira e fugiu em disparada.
Eu não queria matar aquele homem. Juro que não queria! Uma coisa é certa: eu não queria matar ninguém. Sou apenas uma pistola que caiu nas mãos de um bêbado louco. Peço perdão à família daquele pobre que perdeu a vida de modo tão estúpido. Perdão!

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Um comentário:

  1. gostei,bem interessante essa história,que na verdade,acontece no dia-a-dia.as pessoas não tem mais respeito pelo outro,a vida não tem mais valor, as pessoas morrem,por coisas tão banais.é muito triste que o ser humano chegou a esse nível.gostei da história!beijossssssss!!!!!!!

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