SEMANA DE
ARTE MODERNA: 90 ANOS
José Neres
Os momentos de ruptura com uma tradição já arraigada
são essenciais para a renovação artística de um povo e para o aparecimento de
novos valores e de novas concepções artísticas. No início do século XX, o
Brasil passava por grandes mudanças políticas, econômicas e sociais, mas
continuava atrelado à tradição no que dizia respeito às artes. As Vanguardas
Europeias arregimentavam seus simpatizantes e começavam a dar seus primeiros
frutos em terras brasileiras, contudo a maior parte da pequeníssima população
letrada brasileira continuava adepta dos padrões clássicos.
Por conta desse apego à tradição,
autores de grande talento, como Lima Barreto e Augusto dos Anjos, que
produziram obras de alto nível literário, não conseguiram projeção entre seus
contemporâneos, que não viam com muita simpatia as inovações temáticas e
linguísticas de autores não alinhados com o estilo preconizado pelo mundo
acadêmico.
Ainda no início do século XX,
algumas atitudes isoladas tentavam quebrar as barreiras da tradição e mostrar
para a população que as artes em geral podem ser representadas de formas diversas,
que o diferente e o exótico também poderiam ser apreciados e que o Brasil
precisava abrir-se para novas linguagens artísticas. Revistas e jornais alternativos
apareciam e despareciam. Exposições de quadros e esculturas tentavam incutir no
público um sopro renovador, mas os efeitos desses esforços eram atomizados por
severas críticas que quase sempre desestimulavam os poucos que tentavam expor
seus trabalhos aparentemente inovadores.
Foi no início de 1922, mais
exatamente no dias 13, 15 e 17 de fevereiro que, de modo mais ou menos
organizado, os intelectuais insatisfeitos com os rumos das artes no Brasil
conseguiram impor o golpe mais contundente em uma tradição que parecia querer
se perpetuar. Nessa data histórica, há 90 anos, era realizadas a Semana de Arte
Moderna, evento que deu início ao movimento modernista no Brasil.
Logisticamente amparados e contando
com anúncios rudimentares, porém eficientes para a época, ativistas culturais
como Mário de Andrade, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira (que não pôde ir ao
evento), Oswald de Andrade, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del
Picchia, Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti, Paulo Prado e muitos outros homens
e mulheres preocupados com o atraso cultural do Brasil mudaram, com esse
evento, a forma de ver, discutir e produzir arte.
Mas como quase todos os
participantes eram ainda muito jovens e com pouca ou nenhuma projeção nas
artes, o grupo precisava de um nome forte que pudesse chancelar o evento e que
também levasse público pelo menos para a palestra inicial. Coube ao escritor
maranhense Graça Aranha esse papel de abrir a solenidade como a palestra “A
Emoção Estética da Arte Moderna”, proferida no dia 13 de fevereiro daquele ano.
Mas foi no segundo dia do evento, em
15 de fevereiro, uma quarta-feira, que ocorreram alguns dos momentos mais
memoráveis da Semana. O público, não entendendo aquelas pinturas, esculturas,
músicas a que os organizadores e palestrantes teimavam em chamar de arte,
manifestava-se de forma agressiva, furiosa e até violenta, com vaias, palavras
de baixo nível e inclusive tentativas de agressões físicas. Tudo piorou quando
o poeta Ronald de Carvalho recitou o poema “Os Sapos”, escrito por Manuel
Bandeira. Os refrões onomatopaicos que lembravam o coaxar dos anfíbios que
davam nome ao texto incitaram o público a reagir com relinchos, miados, latidos
e muitos gritos. Para a maioria dos visitantes, aquilo não poderia ser chamado
de poesia. Era loucura! Provavelmente, boa parte dos presentes nem mesmo
percebeu as ácidas críticas de Bandeira ao estilo parnasiano, que contava com
muitos admiradores naquela época.
Nessa segunda noite de novidades e
revoltas extremas, os ânimos só foram acalmados pela intervenção musical da
pianista Guimar Novaes que, fugindo à proposta inicial da Semana, tocou
composições de Chopin e Schumann. Para os exaltados manifestantes, aquilo sim
era música, era arte de verdade. O restante não passava de aberrações sem a
menor possibilidade de ser chamada de arte.
No terceiro e último dia, as vaias
escassearam... e o público também. Devidamente avisadas das “bizarrices” que
aconteciam no Teatro Municipal de São Paulo, algumas pessoas que planejavam
assistir aos últimos momentos do evento desistiram e o enceramento tinha tudo
para ser tranquilo. Mas o calçado destoante de Heitor Villa-Lobos causou
revolta. Segundo ele, aquela atitude tida como rebelde se devia muito mais à
inflação causada por um calo que ao desejo de chocar os presentes.
Terminada a Semana, durante dias ela
ainda era motivo de polêmica. Muitas pessoas acusavam os organizadores de
confundirem arte com manifestações explícitas de irresponsabilidade. Outras,
raríssimas, consideram as ideias ali defendidas válidas e dignas de apreciação.
Os jornais, em sua maioria, teciam comentários nada elogiosos aos participantes
da S.A.M. , duvidando inclusive da sanidade daqueles jovens metidos a
artistas. Aparentemente o evento havia
sido um fracasso, mas na prática ele marcou o início de uma nova era nas artes
brasileiras. A partir daqueles três dias
alternados, o modo de pensar escultura, música, pintura, literatura e todas as
demais representações artísticas foi drasticamente alterado. Não era mais
apenas o padrão acadêmico que imperava. Ele começava a dividir espaço com novas
técnicas e estruturas antes inimagináveis.
Mesmo passadas nove décadas da semana
que revolucionou as artes no Brasil, percebe-se que ela ainda é pouco estudada
e pouco documentada. Embora nos últimos anos tenham surgidos alguns trabalhos
sobre a Semana de Arte Moderna, ainda falta muito a ser esclarecido sobre esse
evento e seus reflexos na cultura brasileira. Tentando preencher essa lacuna,
Josué Montello coligiu uma coletânea de textos sobre o evento e o publicou, em
1994, sob o título de “O Modernismo na Academia: testemunhos e documentos”, uma
leitura obrigatória para quem pretenda compreender as origens do movimento
modernista.
Por uma razão só explicável pela
nossa histórica falta de memória para os acontecimentos culturais, a Semana de
Arte Moderna, que tanto barulho causou e que fez tantas vozes serem ouvidas ao
longo dessas décadas, completa seus noventa anos envolta em um incômodo
silêncio, como se fosse apenas mais uma curiosidade nas páginas de um livro
didático.
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