A PROSA CRÍTICA E REFLEXIVA
DE EVA CHATEL
José Neres
(Professor de Literatura. Coordenador
do projeto Sistema Literário Maranhense.)
Uma
das grandes angústias de quem se dedica às letras é a pergunta tantas vezes
revisitada sobre a utilidade da arte literária. Muitas pessoas imediatistas
querem que a literatura tenha obrigatoriamente uma utilidade prática no dia a
dia; outras consideram que o ato de ler não deva ser visto unicamente como uma
tarefa que busque um fim fora de si mesmo, mas admitem que a literatura e a
leitura em geral são essenciais para a formação do ser humano. Há também quem
defenda a ideia de que a literatura seja apenas um suporte para a manutenção
das ideologias dominantes, de perpetuação no poder de elemento e instituições
que usam as letras como forma de eternizarem-se como figuras hipoteticamente
importantes. Também existe quem acredite ser a literatura um importante
instrumento de libertação coletiva ou individual, servindo a palavra escrita
como fonte de reflexão sobre os acontecimentos norteadores do destino da
humanidade.
Para que
serve a literatura? Para ensinar? Para divertir? Para eternizar ideologias? Para trazer à realidade as
mirabolantes histórias que povoam o fértil imaginário de um escritor? Ou, quem
sabe, como forma de ganhar dinheiro sentado diante de uma folha de papel ou da
tela de um computador? Contudo, diante
da sensação de ser levado pelas aventuras de um romance, de ser embalado pelo
ritmo cadenciado de um poema ou de vivenciar a essência humana nos diálogos de
uma peça teatral, o questionamento sobre a utilidade da literatura se torna uma
discussão sem muita importância.
Durante
o ato de leitura, a pessoa mergulha não apenas nas denotações e conotações
expressas pelas palavras, mas sim em um processo de conhecimento do próximo e
de autoconhecimento. Ninguém que leu com atenção um bom livro sai das páginas
do texto da mesma forma que entrou. Sai transformado, mas crítico, mais atento
e muito mais humano.
E é
isso o que acontece quando se chega à última linha de um dos contos de “Substantivo Próprio” ou ao final de um dos dezoito capítulos da novela “De Volta”, ambos de autoria de Eva Maria
Nunes Chatel, experiente professora de língua e literatura que resolveu brindar
seus alunos, colegas, admiradores e leitores com sua prosa bem articulada e
cheia de densidade crítica e psicológica.
Em Substantivo Próprio, que traz como
subtítulo “Fábulas Humanas”, a autora
optou pela narrativa curta, centrada em breves contos nos quais as mazelas
humanas são tratadas de forma lírica e contundente ao mesmo tempo. As histórias
aparentemente banais e que podem ser vivenciadas cada rua de uma cidade
qualquer podem até parecer simples à primeira vista. Contudo essa aura de
cotidiano é sempre quebrada com reflexões que saem do senso comum e alcançam as
profundezas da alma humana, sem deixar de lado a preocupação com o bem-estar
social, econômico, físico e moral das pessoas.
Em
cada conto, no total de catorze, Eva Chatel associa os acontecimentos narrados
às características inerentes a um animal. Nessas verdadeiras fábulas humanas,
uma mulher trabalhadeira como Josefa, que é humilhada por sua condição
profissional e social, pode decidir continuar sendo considerada apenas uma peça
na engrenagem da exploração pecuniária ou estudar com o intuito de sair da
miséria econômica e, principalmente, conseguir ser respeitada como ser humano
que é. Sua teimosia é metaforicamente comparada à de uma jumenta, que “é
teimosa, mas sabe dar coices certeiros” (p. 35). Anastácia, em outro conto, mãe
de diversas crianças, percebe que sua prole pode seguir o mesmo destino dos
filhotes dos porcos, ou seja, podem ser destinados ao abate. Da mesma forma,
seres humanos como Alberto, Damião, Margarida, Marcelo, Oliveira e todas as
outras personagens parecem fadados ao fracasso, há, contudo, nos contos um fio tênue de
esperança, que pode vir em forma de educação ou de esforço próprio. Porém, de
modo geral, as personagens da prosa de Eva Chatel são sempre seres que
“suportam dores, calúnias e desprezo até a última de suas mortes, a qual não
causa piedade em quase ninguém” (p. 80).
Os
contos têm como título o nome dos protagonistas e contam com ilustrações feitas
pela própria autora. Todavia, embora os nomes individualizem as personagens, o
que se percebe é que uma possível troca de nomes não alteraria a situação de
nenhum desses elementos marginalizados pela sociedade. Mesmo com nome, todos
eles não passam de seres anônimos levados por uma enxurrada de desilusões
pessoais e de falta de políticas públicas que lhes tragam alento.
Na
novela “De Volta”, apesar da
previsibilidade do desfecho, o leitor se vê preso em um emaranhado de temas que
se multiplicam formando uma rede de discussões acerca da própria essência
humana e de suas inúmeras ramificações. Utilizando-se do fato de a
protagonista, uma senhora octogenária, estar em estado de coma, Eva Chatel
aproveita-se dessa imobilidade corpórea para demonstrar como o ser humano é
muito mais que um corpo, muito mais que matéria. Livre das amarras das
limitações físicas, a narradora vai flanando por ambientes e situações
aparentemente corriqueiras, mas que, quando vistas sob outro prisma, ganham
densidade e podem servir de base para inúmeras reflexões acerca do homem, seus
sentimentos, seus defeitos e virtudes.
Um
bom exemplo disso está no capítulo intitulado Das Necessidades, em que o olhar penetrante da narradora percorre
lugares diversos e nota que “muitas pessoas necessitam de apetrechos materiais
para se sentirem completas. O planeta poderá até não mais existir em função do
acúmulo de poluição, mas ninguém aceita se desvencilhar de nenhum detalhe
material que o coloque em vantagem em relação aos outros seres humanos” (p.
31). De forma lírica, mas sem perder de foco as mazelas que atravancam os
caminhos do povo, a escritora mostra que as necessidades vão além do que é
realmente podendo servir com algemas para quem coloca a matéria acima de tudo.
Se a
cada capítulo do livro o leitor nem sempre pode esperar uma surpresa ou uma
reviravolta, é certo que ele encontrará matéria suficiente para mudar o modo de
pensar sobre os detalhes aparentemente irrelevantes do cotidiano ou pelo menos
para refletir a própria existência humana, pois a narrativa, como comenta o professor
Dino Cavalcante na última capa do livro, “expõe, através de um jogo discursivo
bem elaborado, as vísceras de uma sociedade cada vez mais individualista, mas
materialista, mas capitalista, mas (sobretudo) cada vez mais carente de
sentimentos humanos”.
Com
esses dois livros, Eva Maria Nunes Chatel, quase que sem querer, contribui para
a resposta das questões levantadas no início deste artigo. Para que serve a
literatura? Talvez para fazer o ser humano sentir-se cada vez mais Humano. E
isso não pode ser considerado pouca coisa.
Foi uma grande surpresa ler os livros da professora Eva.Com sua docilidade com as palavras,nos mostra uma escritora competente e que ainda tem muito a monstrar para todos que amam literatura.
ResponderExcluirEsse post sobre os livros da Eva Chatel é mais do que merecido. E necessário: há de se divulgar boas produções.
ResponderExcluirAguardo com ansiedade minha volta ao Brasil para poder ler tais escritos. Certamente, as idéias qui ali tomaram forma são das mais agradáveis de serem lidas. E não duvido que nos provoque boas reflexões.
Boa leitura. Vou ajudar a divulgar também.
Esse post sobre os livros da Eva Chatel é mais do que merecido. E necessário: há de se divulgar boas produções.
ResponderExcluirAguardo com ansiedade minha volta ao Brasil para poder ler tais escritos. Certamente, as idéias qui ali tomaram forma são das mais agradáveis de serem lidas. E não duvido que nos provoque boas reflexões.
Boa leitura. Vou ajudar a divulgar também.